Ermitaño, detalle del fresco de una capilla lateral de la iglesia del Monasterio de Yuso en San Millán de la Cogolla (La Rioja).  

    O presente trabalho busca estudar como Gonzalo de Berceo, ao narrar o falecimento dos santos que biografa, introduz o gênero à significação da morte.
    Interessa-nos analisar e explicar a construção que este poeta elabora do feminino e do masculino face à morte, apontando para a historicidade e as inconstâncias desta representação.
  Não estamos preocupados em reconstruir como e porque os santos morreram, mas os sentidos atribuídos pelo poeta medieval à estas mortes.

Biblioteca Gonzalo de Berceo

 

     Estamos desenvolvendo, desde de 2001, com o apoio financeiro do CNPq, uma pesquisa intitulada Santidade e Gênero na Hagiografia Mediterrânica no século XIII: um estudo comparativo, que busca discutir, a partir da análise das vidas de santas e santos produzidas por Gonzalo de Berceo e Tomás de Celano, como os discursos de gênero circulantes no seio da sociedade  fizeram-se presentes na construção de padrões de santidade nas penínsulas ibérica e itálica no século XIII.
     No presente trabalho, partindo do estudo das narrativas sobre as mortes dos santos presentes nas obras hagiográficas Vida de Santo Domingo de Silos e Vida de Santa Oria, redigidas por Gonzalo de Berceo, objetivamos traçar algumas reflexões teóricas relacionadas ao uso da categoria gênero no estudo do medievo ocidental, suscitadas no desenvolvimento da pesquisa.[1] Tais questões serão levantadas no decorrer do trabalho, na medida em que faremos a apresentação e a análise dos documentos selecionados.
     O estudo histórico da morte desenvolveu-se na França, a partir da década de 70. Seus principais difusores foram François Lebrun, Pierre Chaunu, Michel Vovelle, e, no caso específico dos trabalhos sobre a morte no medievo, Philippe Ariès, Jacques Chiffoleau e M. Lauwers (Oexle, 1996, p. 27). Estas investigações influenciaram outras historiografias, sobretudo a alemã que, primeiro em Friburgo de Brisgovia e, posteriormente, em Münster, foram organizados grupos dedicados à pesquisa da morte no medievo, nos quais se destacaram O.G. Oexle, K. Schmid. E J. Wollasch (IOGNA-PRAT, 2003, p. 523).
     Em um primeiro momento, a morte foi tratada em perspectiva estruturalista, sobretudo pela História das Mentalidades. Atualmente, porém, busca-se estudar a morte “no interior de rede de relações e de trocas hierarquizadas, de estruturas de autoridade e poder, de sistemas simbólicos cuja coerência e lógica convém reencontrar” (Lauwers, 2002, p. 244).
     No caso específico dos estudos berceanos, a morte já foi tema de algumas reflexões. Em 1968, J. Artiles, em uma obra na qual se dedica a estudar os recursos literários empregados por Gonzalo de Berceo, ao tratar dos topoi usados pelo poeta, faz breves considerações sobre as narrativas das mortes dos santos. O autor defende que, apesar de muito semelhantes, o relato das mortes dos santos de Berceo, por sua atmosfera de quietude, “...es incompatible con el mero tópico” (p. 249).
     Anos depois, Saugnieux retoma o tema em seu estudo O vocabulário da morte na Espanha do século XIII segundo a obra de Berceo, cuja edição brasileira data de 1996. O autor já havia tratado do assunto em trabalhos anteriores, mas limitando-se ao estudo de um dos poemas berceanos, Milagros de Nuestra Señora. Como o próprio título indica, neste artigo o autor faz um estudo do vocabulário relacionado à morte empregado pelo poeta, comparando-o com o da Vulgata e analisando todas as obras berceanas. Este trabalho não é, como o de Artiles, um estudo sobre os significados da morte para Berceo, mas discute a forma do texto.
     O último trabalho a destacar é um capítulo da obra El mundo espiritual de Gonzalo de Berceo (1999), de J. A. Ruiz Dominguez, em que o autor trata da morte. A preocupação central do trabalho é relacionar as idéias de Berceo às diretrizes eclesiásticas e ao pensamento teológico medieval.
     Apesar da morte ter sido um tema trabalhado pelos estudiosos que se dedicam a investigar as obras berceanas, este ainda não foi abordado na perspectiva dos estudos de gênero, tal como nos propomos a fazer neste trabalho. Partimos das idéias de Joan Scott e Jane Flax, e, portanto, assentamos nossa pesquisa no paradigma pós-moderno e consideramos os estudos de gênero como um campo da História Cultural.  Desta forma, rejeitamos os sentidos naturais e universais e objetivamos discutir como uma dada visão de gênero construiu-se, impôs-se e funcionou em um determinado grupo em um dado momento, desconstruindo-a, sublinhando a sua historicidade. Assim, mais do que descrever e interpretar, nosso trabalho busca analisar e explicar as construções de gênero, atendo-se ao estudo das significações.
     Por sua matriz pós-estruturalista, os estudos de gênero que desenvolvemos apontam para a impossibilidade da neutralidade científica; realçam a subjetividade dos sujeitos e da linguagem; elegem o particular, renunciando à busca pelas origens ou por leis causais e gerais para a explicação dos fenômenos; trabalham com diferentes variáveis, pois defendemos que ainda que o gênero esteja presente em todos os aspectos da experiência humana, não os determina, mas os constitui parcialmente; privilegiam o estudo dos conflitos, das contradições, dos desvios, da invenção; problematizam a configuração das identidades e as experiências.
     O presente trabalho, portanto, busca estudar como Gonzalo de Berceo, ao narrar o falecimento dos santos que biografa, introduz o gênero à significação da morte. Interessa-nos analisar e explicar a construção que este poeta elabora do feminino e do masculino face à morte, apontando para a historicidade e as inconstâncias desta representação. Não estamos preocupados em reconstruir como e porque os santos morreram, mas os sentidos atribuídos pelo poeta medieval à estas mortes.


     Gonzalo de Berceo foi o primeiro poeta a escrever em castelhano sobre o qual há notícias históricas. Nasceu em La Rioja, região centro-norte do Reino de Castela, provavelmente em 1196. Foi ordenado sacertode por volta de 1227.  Ainda que secular, conhecia a vida monástica. Antes de sua ordenação, estudou  no mosteiro de San Millán de la Cogolla, um dos mais ricos e influentes da região riojana, e, mesmo depois, manteve laços estreitos com o cenóbio emilianense. O caráter culto de sua produção literária permite inferir que o riojano tenha estudado em uma escola urbana, provavelmente na Universidade de Palência.
     Selecionamos, para analisar em nossa pesquisa, duas das obras compostas por Berceo: a Vida de Santo Domingo de Silos (VSD) e a Vida de Santa Oria (VSO). A opção por estes poemas reside no fato de apresentarem a biografia de santos que viveram na mesma região, Castela, e no mesmo período, século XI, e que possuíam o mesmo estatuto religioso - eram reclusos - mas anatomicamente diferentes: um nasceu fêmea e o outro macho.
     Optamos por trabalhar com relatos sobre santos e santas, pois interessávamos verificar como os hagiógrafos construíram as categorias mulher e homem à luz de outras variáveis, como santidade, inserção eclesiástica, forma de vida religiosa. Desta forma, não adotamos, à priori, categorias fechadas como homem-mulher ou feminino-masculino e estamos, com nossas pesquisas, verificando como estas são discursivamente produzidas; se são negadas, alteradas ou até eliminadas nas obras selecionadas.

     É consenso entre os que se dedicam ao estudo de gênero que a distinção sexual não é natural, universal ou invariante, a despeito das diferenças anatômicas entre machos e fêmeas na espécie humana. Contudo, alguns trabalhos têm insistido no caráter binário sobre a diferença sexual, definindo a mulher como uma categoria fixa e em oposição à categoria homem, e reduzindo os estudos de gênero à investigação das relações sociais entre homens e mulheres, o que, em nossa perspectiva, resultam de uma má leitura das idéias de Joan Scott.
     A historiadora americana defende que o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, mas não o único, e que se baseia nas diferenças culturalmente construídas que distinguem os sexos. E como pressupõe diferenças, o gênero é uma forma primária, ou seja, primeira, básica, fundamental, de relações significantes de poder.
     Para melhor compreensão desta definição de Joan Scott, há que estar atento ao fato de que a autora adota a concepção de poder de Foucault: o poder não é unificado, não é coerente, e não se encontra centralizado. Assim, para a historiadora americana, o gênero não pressupõe categorias fixas, ao contrário, aponta para as múltiplas possibilidades de experiências e de construções de identidades; é um campo no qual, ou por meio do qual, se articula o poder, mas não é o único; está compreendido em diferentes aspectos do social que funcionam juntos, mas que não são reflexos uns dos outros, visto que o social não se organiza de forma coerente a partir de um centro que o determina.
     Outro falso problema que é levantado por muitos que têm se dedicado a estudar o gênero é a falta de fontes. Esta questão ganha especial interesse quando se trata de trabalhos referentes ao medievo, em que a quantidade e a qualidade da documentação disponível ao pesquisador é ainda mais limitada face à proveniente de períodos históricos posteriores.
     Como já assinalamos, os estudos de gênero estão atentos aos processos de significação e o gênero está presente em todas os aspectos da experiência humana, constituindo-os, ainda que parcialmente. Assim, todo e qualquer vestígio do passado pode ser empregado como fonte para o historiador do gênero. Não há que, necessariamente, privilegiar textos escritos por mulheres ou homens, mas encontrar como são categorizados nos materiais preservados, independente de sua autoria. Tampouco há que se preocupar em buscar materiais que façam, necessariamente, referências diretas às relações entre homens e mulheres. Primeiro, porque os estudos de gênero não se resumem às relações entre homens e mulheres, mas em que como se constituem e se perpetuam. Segundo porque, desta forma, os trabalhos poderão correr o risco de aterem-se somente ao estudo de certos setores da organização social, como a família, a sexualidade, a reprodução.
     Também estamos cientes que nenhum documento é capaz de nos fazer reviver o que passou, mas estamos certos de que eles permitem uma aproximação com o passado. Como afirma Eleonora Costa, “ em vez de pretender trabalhar os indícios históricos (fontes) com a convicção de que esses nos levam à reconstrução do acontecimento, tomamo-los como uma construção discursiva. Ou seja, a fonte histórica é também um acontecimento que deve ser desvendado como construção discursiva, como monumento” (1994, p. 190). E, acrescentamos, como portadores de significações de gênero.
     As obras que selecionamos são textos de caráter religioso que têm como principais funções edificar os fiéis e estimular o culto dos santos que biografa. São obras narrativas, com caráter modelar e festivo, sem preocupações de traçar reflexões teológicas ou instituir normas.  
     A VSD foi composta por volta de 1240, em castelhano, com 777 estrofes de quatro versos alexandrinos, denominados de cuaderna via. Narra a biografia de Domingo, cuja trajetória eclesiástica foi bem variada: foi clérigo secular, eremita e por fim ingressou na vida religiosa regular no mosteiro emilianense, onde alcançou o cargo de prior. Após conflitos com o rei Garcia de Nájera, exilou-se em Castela, onde tornou-se abade do cenóbio de Silos, do qual, segundo a tradição, foi reformador. Faleceu em 1073, alcançando a idade de 73 anos, expectativa de vida muito superior a média na península ibérica medieval, mesmo em se tratando de um religioso (PASTOREAU, 1989, p. 24-25).
     A VSO relata a vida de Oria que se tornou, aos 9 anos, reclusa do Mosteiro de San Millan de la Cogolla. Sua vida foi marcada, a partir dos 25 anos, por diversas visões. Morreu jovem, em 1070, aos 27 anos. Esta foi, segundo os especialistas, a penúltima obra elaborada por Gonzalo de Berceo, por volta de 1264,  também em castelhano. Em sua forma atual, contém 205 estrofes com versos em cuaderna via.
     Mas como analisar tais documentos? Como sublinhamos, os trabalhos de gênero estão voltados para o estudo das significações, pois, como aponta Roger chartier, "a diferença sexual é sempre construída pelo discurso que a funda e legitima" (1995, p. 39).  Neste sentido, há que analisar os discursos.
     Em nossa pesquisa, compreendemos discurso como construções humanas coerentes, coletivas, dinâmicas, e organizadas sobre uma determinada temática. Os discursos são, portanto,  compreensões produzidas pelas sociedades sobre os diferentes aspectos da organização social. Há que sublinhar, porém, que os discursos não se limitam ao universo das idéias, pois estão presentes e constituem o social.
     Nenhum discurso é totalmente absoluto, pois ainda que se torne hegemônico, não elimina o outro; busca desqualificá-lo, ignora-o. Também não é autônomo ou imutável, já que nasce a partir de outros discursos e deles sofre a interferência. Neste sentido, podemos afirmar que convivem, numa mesma sociedade, múltiplos discursos, com lógicas e preocupações diferentes, que se complementam ou se opõem.
     A constituição dos discursos, como já assinalamos, é inseparável do social. Porém, a sua enunciação produz-se num determinado tempo e lugar, por sujeitos (que pode ser um coletivo ou um indivíduo), em meio a relações de forças, sob diversas linguagens - verbais ou não verbais (gestos, sons, imagens etc) - e sempre para um outro, um receptor. Em nossa perspectiva de análise um enunciado não é o discurso: o contém, o expressa, o materializa. Desta forma, um mesmo enunciado pode expressar mais de um discurso ou este pode estar presente, de forma involuntária, como um desvio ou um não dito, em uma dada enunciação.
     Os enunciados estruturam-se a partir de leis próprias, específicas de cada linguagem. Desta forma,  não podem ser considerados como um reflexo direto da visão de mundo de um dado autor ou do contexto no qual estava inserido. Ainda que tais elementos sejam dados fundamentais para a análise, há que levar em conta as particularidades do enunciado selecionado e as regras que o constituem
     Assim, para reconstruir e analisar os discursos e sua dinâmica, há que se estudar o enunciado e a sua transmissão, já que só assim é possível verificar como o discurso ganha/produz sentido. Para a análise da VSD e da VSO, optamos pelo uso da técnica de análise da narrativa, adequada a textos narrativos e/ou descritivos. Selecionarei as estrofes que narram a morte dos santos, bem como os antecedentes, buscando identificar e analisar os diversos elementos que configuram o relato e que o tornam um todo de sentido: o enredo, a presença do narrador e a sua forma de inserção no relato, as personagens e sua caracterização, as indicações temporais e espaciais.
     O relato sobre a morte de Domingo é feito na segunda parte da obra, onde os seus milagres em vida também são narrados, nas estrofes finais - 488 a 532. Há, porém,  algumas versos na primeira parte do poema, 238 e 239 e 282 a 285, que podem ser relacionados à morte. Na VSO, os versos que vão da estrofe 135 a 183 narram o passamento de Oria. Como na VSD, algumas estrofes anteriores, 77 a 93, estão ligadas ao relato do falecimento da reclusa.
Tanto a morte de Domingo como a de Oria são anunciadas, porém de formas diferenciadas. O abade pressente a sua própria morte e a profetiza, ao menos na perspectiva do narrador, após ter participado do traslado dos mártires Vincêncio, Sabina, e Cristeta. Quando retorna à sua comunidade, sem levar consigo relíquias, é criticado pelos monges silenses, aos quais responde que se fossem fiéis à Deus, “seredes de reliquias ricos, e abondados”. O narrador qualifica esta resposta como uma profecia da qual o próprio santo não tinha sequer consciência. A morte da monja foi anunciada duas vezes, de forma sobrenatural. A primeira pela Virgem que, durante uma visão da santa, informou que ele teria uma enfermidade mortal (VSO 135). A segunda foi anunciada pelo pai de Oria, Garcia, já falecido, que aparece em sonhos à Amunna, mãe e companheira de vida religiosa da reclusa (VSO 164-169).

     Outro dado a ressaltar é a conexão direta que o narrador faz entre a vida terrena e a morte gloriosa dos santos. Nas obras, tanto Domingo quanto Oria, ainda em vida, sabem que receberão, caso mantenham-se fiéis, galardões. Em um sonho, dois anjos aparecem ao abade e lhe informam que há três coroas esperando por ele no céu (VSD 238-239). Já a reclusa, em sua primeira visão, vê um trono, guardado por Voxmea, que lhe estaria destinado após à morte (VSO 77-93). Ambos demonstram humildade, afirmando não se considerarem dignos de tais honras. A riojana, porém, vai além: teme não manter-se fiel até o fim, por ser pecadora.
     Creio que este dado deve ser pensado à luz de outro. A morte de Domingo está relacionada à velhice, enquanto à de Oria foi o resultado de uma longa enfermidade. Parece-nos que a doença da reclusa funciona, dentro da lógica do texto, como uma bênção, pois assegura, por sua debilidade física, a garantia da conquista da salvação. A monja fica enferma após a segunda visão que, no poema, ocorre 11 meses após a primeira (VSO 114). Após ver o trono que lhe estava destinado, na primeira visão, a monja deseja morrer imediatamente para garantir o seu prêmio, pois teme que não poderá alcançá-lo, caso continuasse a viver. Assim, na segunda visão, quando sua enfermidade mortal é anunciada, ela é caracterizada pelo narrador como um signo, um sinal da mercê de Maria.
     A morte é desejada por Oria, pois ela traria a vitória final contra o pecado. Já Domingo, segundo a VSD, possui sentimentos diversos face à morte: ao mesmo tempo que a deseja, pois assim receberá finalmente suas coroas (VSD 488), sente receio (VSD 489). Pelo contexto da narrativa, conclui-se que o abade está receoso por causa dos monges, não porque tem medo de morrer. Assim, procurou preparar a comunidade para a sua morte, fazendo um sermão no qual exortou o grupo e deu conselhos práticos (VSD 492-502). Ou seja, manteve-se líder e ativo até o seu fim.
     Já Oria, na medida em que sua morte vai chegando, torna-se cada vez mais imóvel e impossibilitada de falar. Segundo Julian Weiss, a VSO apresenta uma estreita junção entre linguagem e ascetismo feminino, que fica patente logo na primeira visão da reclusa, quando esta encontra a personagem alegórica Voxmea (nome que traduzido significa voz minha) guardando seu futuro trono celeste: é a voz de Oria, ou seja, sua fala, que lhe assegura o trono (VSO 90).
     Desta forma, quanto mais se aproxima a sua morte, mais a sua voz fica embargada.
Assim, enquanto Domingo profere um sermão, Oria recebe a visita de seu confessor (VSO 170-171). A ele são dirigidas as palavras da reclusa, para que registrasse tudo por escrito; na morte, a experiência espiritual feminina, transmitida oralmente, passa para o domínio da autoridade clerical e masculina, tornando-se escrito.

     As mortes dos santos berceanos é pública, mas os que acompanham os mortos possuem comportamentos diferentes. Na momento da morte, o bispo está com Domingo, certamente representando a autoridade eclesial que reconhece a santidade do abade. Também está cercado pelos monges, que choram muito, e no que são repreendidos pelo próprio abade: “semejades mugieres en esso que fazedes”. Oria é assistida por sua mãe e por outras mulheres, provavelmente também religiosas (VSO 148); por seu confessor, Munio; por monges; por eremitas, e pelo próprio abade emilianense (VSO 178). Diferente do que ocorre na VSD, o narrador, na VSO, apresenta pessoas altamente contidas e discretas. Só destaca o sofrimento de Amunna que, após despertar do sonho em que Garcia informa que a filha morreria em breve, “fue en cuita, despues fue mas coitada, Ca sabia que la fixa seria luego pasada, E que fincaria ella triste e dessarrada” (VSO 169). Provavelmente por tratar-se de um texto modelar, prefere descrever mulheres religiosas que possuem um comportamento exemplar: apesar do sofrimento, não se deixam levar pela dor, como os monges silenses que, aliás, foram exortados.
     O narrador descreve o momento da morte apresentando os gestos do abade: “Fo çerrando los oios el sancto confessor,/ Apretó bien sus labros, non vidiestes meior,/ Rendió a él la alma a muy grant su sabor” (VSD 521abd). Os gestos de Oria são semelhantes: “Alzó la mano diestra de fermosa manera:/ Fizo cruz en su fruente, sanctiguó su mollera./ Alzó ambas las manos, juntólas en igual,/ Commo qui riende graçias al buen Rey espiritual:/ Çerró oios e boca la reclusa leal:/ Rindió a Dios la alma, nunca mas sintió mal” (VSO 176bc, 177). São mortes serenas, apresentadas dentro dos cânones hagiográficos. Porém há uma sutil diferença: Oria faz uma oração final agradecendo por sua morte. Como já pontuamos, desejada. A morte, para a reclusa, é vista como um prêmio, pois a livrará das tentações terrenas que poderiam levá-la a perder seu trono.
     As diferenças também são visíveis no pós-morte. Os anjos levam imediatamente a alma de Domingo aos céus, onde é recebida com alegria, no que contrasta com a tristeza que reinava nos funerais, assistido por diversas autoridades eclesiásticas (VSD 522-532). Quanto a Oria precisa esperar uma noite para poder finalmente entrar no céu (VSO 198-200). As razões para a espera não são apresentadas na obra. Segundo Ruiz Dominguez, este dado já deveria estar presente na fonte latina de Gonzalo de Berceo ou, como a monja morrera de noite, as portas do céu já estavam fechadas (1999, p. 286). Creio que a resposta para a espera de Oria esteja relacionada ao gênero.
     Segundo Jean-Claude Schmitt, no medievo acreditava-se que a alma, ao separar-se do corpo, ficaria um tempo em espera até a definitiva salvação, a não ser que já estivesse imediatamente salva ou condenada (1999, p. 41). Como durante a Idade Média a mulher foi associada à matéria e o homem ao espírito, pois consideravam que homens e mulheres possuíam o mesmo corpo físico, só que diferenciados pelo grau de desenvolvimento - os corpos dos homens eram considerados como o padrão ideal, a “perfeição metafísica”, e o das mulheres vistos como produtos incompletos, a meio caminho desta perfeição (Laqueur, 2001. p. 14-5) - é compreensível a diferença “temporal” para a entrada de Oria no céu, face a de Domingo. O abade, por ser homem e, portanto, estar mais próximo da perfeição, teve a sua santidade prontamente reconhecida, enquanto Oria, uma mulher e, portanto, mais próxima ao carnal, precisou aguardar um pouco mais pelo reconhecimento celestial efetivo de sua santidade.
     Os locais em que os corpos foram enterrados também recebem destaque na narrativa. Vistos como verdadeiros tesouros, pelo consenso dos religiosos e dos leigos, os corpos tornam-se alvo de peregrinações, pois são considerados relíquias. Para os homens medievais havia uma relação direta entre os restos mortais dos santos e as suas virtudes. Assim, cria-se que, através das relíquias, graças poderiam ser alcançadas. Além disso, havia uma razão mais pragmática: peregrinos traziam oferendas aos mosteiros. Desta forma, os túmulos deveriam estar claramente identificados nas hagiografias, para que fossem encontrados sem dificuldades.
     As mortes dos santos berceanos são anunciadas e públicas. Belas e serenas, apresentam uma conexão direta com a vida terrena dedicada a Deus. Porém, face à morte, Domingo e Oria apresentam comportamentos distintos. O abade tem sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo que deseja a morte preocupa-se com a sua comunidade. Assim, ainda que enfraquecido, consciente, liderou os monges até o seu fim. Oria anseia pela morte, pois a considera uma garantia de sua vitória final. Tomada pela enfermidade, vai ficando cada vez mais imóvel e impossibilitada de falar. Porém, quase sem forças, transmite oralmente as suas experiências espirituais para seu confessor, que as colocará por escrito Ao entregar sua alma a Deus, rende graças, certa de que conseguiu superar as tentações terrenas. Contudo, não entra imediatamente no céu, diferentemente de Domingo, cuja a alma é levada aos céus por anjos.
     Ao estudarmos os significados dados por Gonzalo de Berceo à morte dos santos, verificamos as contradições e os desvios. Ainda que escrevendo obras que buscavam suscitar à veneração dos fiéis a Oria e a Domingo, mesmo que destacando a santidade da reclusa e do abade, ele reveste suas mortes de sentidos diferentes. Domingo, ao falecer, chega ao ápice de uma longa vida dedicada a Deus. Assim, ao morrer, é automaticamente reconhecido como santo. Oria, após viver alguns anos como reclusa, dedicando-se à contemplação e renunciando aos diferentes prazeres, abraça a morte como um prêmio. Apesar de já ter um trono reservado no céu, precisou aguardar um pouco para alcançá-lo definitivamente.
     Ainda que partilhando do mesmo estatuto religioso, pois ambos eram regulares; terem vivido no mesmo século; serem naturais da mesma região, partilhando, certamente, de traços culturais comuns, suas mortes ganham sentidos particulares aos olhos do mesmo hagiógrafo, pois ele fundamenta sua narrativa na certeza de que homens e mulheres, ainda que dedicados a Deus, possuíam graus diferenciados de perfeição. A mulher, mais próxima da matéria e, portanto, mais suscetível às emoções e, por extensão, ao pecado, é vista como naturalmente inferior, carecendo da autoridade masculina para dirigi-la. Já os homens, hierarquicamente superiores, são considerados mais próximos de Deus, mais racionais e, portanto, naturalmente líderes.
     A obra apresenta outras relações de poder, que optamos por não analisar neste trabalho. Vamos citar algumas: a preocupação do poeta de colocar autoridades eclesiásticas presentes no momento da morte dos santos; de realçar que Domingo só estava acompanhado de homens no momento da morte; de registrar o local dos sepultamentos. Ou seja, na significação da morte de Berceo, por seus vínculos contextuais, diferentes relações de poder fazem-se presentes, sobretudo no tocante à Igreja Romana.
     Mas como articular estas conclusões particulares ao geral? De que forma a significação berceana diferencia-se de outras e por quê? Como chegar à conclusões mais gerais se os estudos de gênero privilegiam a micro-escala? Conclusões gerais devem ser a meta dos estudos de gênero?
Em nossos estudos estamos amadurecendo tais reflexões. Ainda não possuímos uma visão conclusiva sobre a questão, mas creio que a comparação pode ser uma saída possível. Partindo de casos particulares, é possível montar séries discursivas, traçando conclusões mais gerais, sem porém, dedicar-se a encontrar “leis” históricas, já que o que é visado são as semelhanças e diferenças dos fenômenos de significação elaborados por sujeitos ou grupos.

     Não temos a pretensão de esgotar os temas aqui apresentados, sobretudo porque eles foram pensados a partir de um dado lugar, um determinado momento, com uma perspectiva própria, e um objetivo especifico: instaurar o diálogo com outros estudiosos do gênero.

 

 

Bibliografia

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Notas

[1] Faz-se importante ressaltar que tal trabalho complementa o artigo, já publicado, no qual tratamos dos relatos referentes às mortes de Clara e Francisco de Assis, elaborados por Tomás de Celano. Cf. SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da, PASSOS, Elisabeth da Silva. Representações da morte em Tomás de Celano. Cadernos do Ceom. Chapecó, v.16, n.16, p.213 - 249, 2002.

 

 

Como morrem os santos:
reflexões teóricas sobre os estudos de gênero aplicados ao medievo ocidental

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Mestre em História Antiga e Medieval (UFRJ), Doutora em História Social (UFRJ),
Professora Adjunto do Departamento de História da UFRJ,
Co-coordenadora do Programa de Estudos Medievais da UFRJ, Pesquisadora do CNPq.

 

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